Uma nova vida para os BRICS? André Bueno, Universidade do Estado de Rio de Janeiro

In Análisis, Política exterior by Xulio Ríos

A XI cúpula dos BRICS, realizada em Brasília nos dias 13 e 14 de novembro, começou em estado de tensão. Na noite do dia 13, apoiadores do autointitulado presidente da Venezuela, Juan Guaidó, invadiram a embaixada venezuelana na capital brasileira e a ocuparam. O evento causou grande mal estar internacional, já que as convenções e leis sobre a soberania das embaixadas determinam expressamente sua proteção e salvaguarda. A invasão do serviço diplomático venezuelano foi considerada um incidente sério; como agravantes, a leniência das forças de segurança brasileiras [que não se envolveram no caso], e o apoio explícito de membros do governo a Guaidó causaram um extremo desconforto. Em um momento no qual o governo brasileiro precisava mostrar que suas instituições são confiáveis, e que questões ideológicas não estavam em jogo no centro das negociações, o ataque a embaixada, justamente na capital brasileira, serviu como um péssimo sinal em relação à imagem do Brasil.

Houve uma clara preocupação com que China e Rússia poderiam pensar sobre esse evento; apoiadores do governo de Maduro, a invasão poderia soar como uma provocação ou teste. Outros problemas de caráter mais prático pareciam anunciar, ainda, que a cúpula não seria bem sucedida: parte da delegação russa não pode participar de todo o evento, por questões burocráticas [concessão de autorizações de acesso], e atrasos no cumprimento da programação irritaram diplomatas de todas as representações.

Mesmo assim, o clima de renovação dos BRICS, com a notável mudança de discurso do presidente Bolsonaro em relação à Rússia e China, suplantou por completo os problemas logísticos e contextuais. De fato, a própria mídia brasileira – assim como os integrantes do encontro – praticamente ignorou o problema com a embaixada da Venezuela, e ficou atenta aos movimentos da cúpula. Jair Bolsonaro [Brasil], Xi Jinping [China], Vladimir Putin [Rússia], Cyril Ramaphosa [África do Sul] e Narendra Modi [Índia] compareceram com suas delegações de primeira linha ao encontro, e um vasto número de especialistas e funcionários participou dos encontros paralelos, organizados para desenvolver e estruturar encaminhamentos para os temas discutidos na cúpula.  Como o sítio do Itamaraty [serviço diplomático brasileiro] informa, foram prioridades nesses encontros: “(i) o fortalecimento da cooperação em ciência, tecnologia e inovação; (ii) o reforço da cooperação em economia digital; (iii) o adensamento da cooperação no combate aos ilícitos transnacionais, em especial ao crime organizado, à lavagem de dinheiro e ao tráfico de entorpecentes; e (iv) o incentivo à aproximação entre o Novo Banco de Desenvolvimento e o Conselho Empresarial”. O mesmo produziu um sítio cobrindo todos os aspectos do evento, suas discussões e os documentos produzidos.[1]

Como era esperado, Xi Jinping teve um papel relevante no desenvolvimento da reunião, mostrando que a China tem um claro projeto estratégico em relação ao mundo e ao eixo de cooperação Sul-Sul. Ficou bastante evidente que a China entende os BRICS como uma alternativa ao G7 [Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Alemanha, França, Japão e Itália], caracterizando um novo eixo econômico e político capaz de fomentar novas orientações dentro da ordem mundial. De forma pragmática, o presidente Jair Bolsonaro evitou as discussões ideológicas e focou nos projetos econômicos em comum, como o banco dos BRICS, dando um novo alento a programa de cooperação; passou, também, por cima de suas posições anteriores e elogiou abertamente a China, buscando superar o clima de desconfiança. Ao transferir o cargo de presidência dos BRICS para Putin, o presidente brasileiro igualmente reforçou a continuidade e confiança nessas renovadas alianças, demonstrando que o alinhamento exclusivo com os Estados Unidos já não é mais, por enquanto, uma prioridade.

“Multilateralismo” foi a palavra de ordem do encontro, privilegiando o fortalecimento entre os BRICS nos mais diversos âmbitos. As orientações sobre investimentos transnacionais, ampliação das trocas tecnológicas e o combate à corrupção foram pontos cruciais nos discursos. Este último item tem sido visto como um problema sério no desenvolvimento interno dos BRICS, e é difícil saber o quanto esses países tem sido bem sucedidos nesse intento. China e Brasil vivenciam longas campanhas contra corrupção na política, com resultados variados. Diversificar os investimentos é um projeto ousado e arriscado, tendo em vista as instabilidades políticas internas.

De fato, os BRICS parecem ter testemunhado a estratégia 30 da coleção clássica dos 36 aforismos estratégicos chineses, “o convidado no papel de anfitrião”. O protagonismo chinês foi o centro das atenções brasileiras, de modo que a condução dos temas presenciou uma participação menos evidente dos outros países. Em contrapartida, o governo brasileiro conseguiu algumas concessões tanto na redação do documento final quanto nos projetos futuros a serem desenvolvidos.[2] O item 66, sobre a “agricultura com bases científicas” veio de encontro, por exemplo, as intenções brasileiras de fortalecer suas exportações de grãos em regras mais flexíveis. O Brasil já teve problemas sérios ao exportar grãos para a China fora das especificações determinadas, o que já gerou prejuízos.

Mesmo assim, com muitas promessas – e alguns acordos, efetivamente – o entendimento entre China e Brasil deu uma nova vida aos BRICS. A nova leva de investimentos que o governo brasileiro aguarda, porém, não está garantida. Bolsonaro conseguiu resgatar as atenções de Xi Jinping, e os chineses mantém um interesse vivo no Brasil; mas a cautela segue sendo a estratégia básica depois desse novo encontro, e o sucesso do mesmo dependerá de um trabalho constante e determinado para o cumprimento de suas metas fundamentais.

[1] http://brics2019.itamaraty.gov.br/

[2] Ver a declaração de Brasília em http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/21083-declaracao-de-brasilia-11-cupula-do-brics.