A cidade de Chongqing está a ser palco de uma purga política poucas vezes vista na China desde os protestos da praça Tiananmen em 1989. O objectivo é eliminar o espírito vermelho da Revolução Cultural, representado pelo legado de Bo Xilai, antigo líder local que caiu em desgraça. (em Hoje Macau).
“O show de Chongqing acabou”, disse o comentador político Wang Kan ao jornal Estado de S. Paulo. As canções revolucionárias começaram a sair de cena. As mini-séries “comerciais”, que foram banidas há um ano para dar lugar a “concertos vermelhos” e programas revolucionários, voltaram aos ecrãs de televisão.
Acima de tudo, o drama político colocou em xeque os métodos utilizados na campanha contra o crime organizado, que levou à detenção de quase 5 mil pessoas e deu visibilidade nacional a Bo e ao seu braço direito, o chefe da polícia Wang Lijun. Todos os dias aparecem novas denúncias de que muitas das investigações foram conduzidas sob tortura, com provas fabricadas e desrespeito pelos procedimentos legais básicos.
Um estudioso da Revolução Cultural e ex-editor de uma revista dedicada à história do Partido Comunista, He Shu, acredita que a operação anti-máfia era o elemento que mais aproximava o período de Bo dos anos de terror vividos pela China entre 1966 e 1976. “Como Mao Tsé-tung, Bo ignorou a lei e criou grupos especiais de investigação, sem definir claramente o que era considerado crime.”
Ainda venerado
Da mesma maneira que Mao, Bo soube electrizar a população. Carismático e dono de um estilo próprio num mar de líderes inexpressivos, continua a ser venerado por grande parte da população de Chongqing, mesmo depois do seu afastamento.
As cerca de 15 pessoas abordadas pela reportagem do jornal brasileiro na cidade de Chongqing foram unânimes em manifestar admiração pelo ex-governante. O combate ao crime, a melhoria das infra-estruturas urbanas e as políticas sociais são as principais razões que justificam o apoio ao líder afastado.
Estes eram também os ingredientes do “Modelo de Chongqing” que Bo pretendia usar como referência para entrar no Comité Permanente do Politburo, o grupo de nove pessoas que dirige a China e cujos novos membros serão definidos no congresso do PC no fim do ano.
Integrante da poderosa facção dos “pequenos príncipes”, formada por filhos de heróis revolucionários, Bo era um dos favoritos, apesar da oposição do actual primeiro-ministro, Wen Jiabao, feroz crítico da Revolução Cultural e um dos líderes da facção rival à do ex-chefe de Chongqing.
Na opinião de Wang Kan, Bo seria um dos nove se o ex-comandante da sua operação anti-máfia não tivesse pedido asilo político no Consulado dos EUA em Chengdu, em Fevereiro, num gesto que chocou os chineses.
História de filme
As razões de Wang Lijun continuam nebulosas, mas o enredo cinematográfico ganhou mais um personagem na semana passada, depois de Londres ter pedido à China que reabra a investigação sobre a morte do britânico Neil Heywood, ocorrida em Chongqing em Novembro.
Heywood era próximo da família de Bo, mas tinha entrado numa disputa comercial com a mulher do ex-líder, a advogada Gu Kailai. O britânico que morava em Pequim apareceu morto num quarto de hotel em Chongqing. A polícia concluiu que a causa da morte teria sido o consumo excessivo de álcool, apesar dos seus amigos garantirem que ele não bebia. Não houve autópsia e o corpo foi cremado na China.
Segundo a Reuters, o rompimento entre Bo e Wang Lijun ocorreu depois deste ter levantado a suspeita de que o britânico tinha sido envenenado e que o homicídio teria o envolvimento de Gu Kailai.
O maior paradoxo da campanha de nostalgia maoista promovida por Bo Xilai em Chongqing é o facto da sua família ter sido vítima dos horrores da Revolução Cultural. O pai foi preso e torturado, e a sua mãe foi assassinada por guardas de Mao. O próprio Bo esteve preso de 1968 a 1972.
Como tudo o que envolve a cúpula do PC, o destino de Bo é um mistério. Não há informações sobre a sua localização, nem mesmo sobre as razões do seu afastamento. Um detalhe, porém, revela a intensidade da disputa interna e o apoio de Bo Xilai dentro do partido: ainda mantém a sua cadeira entre os 25 integrantes do Politburo, a segunda instância na hierarquia do poder na China.