Rui D´Ávila Lourido é Historiador, Presidente do Observatório da China, Coordenador Cultural da UCCLA, Investigador do Centro de Estudos dos Países de Língua Portuguesa (CEPLP) do Instituto de Estudos Regionais da Universidade de Economia e Negócios Internacionais de Beijing (UIBE) autor e co-autor de inúmeros livros e textos sobre as relações entre Portugal - Macau e a China, publicados em Português, Inglês e Chinês.
Quer falar-nos sobre os direitos humanos na China?
Tenho todo o prazer em responder, a título pessoal, visto o Observatório da China ser uma associação de académicos e pessoas interessadas nos estudos multidisciplinares sobre a China e no conhecimento da civilização chinesa que podem ter, individualmente, diferentes perceções. No discurso político é usual utilizar-se o tema dos direitos humanos, como arma de arremesso politico contra a China, esquecendo o quadro geral e o tempo longo no desenvolvimento histórico das relações entre o Ocidente e a China. Não sou advogado dos líderes chineses, contudo, numa perspetiva histórica das relações entre a Europa e China, e para sermos sérios e justos na análise deste tema, necessitamos enquadra-lo no contexto das relações entre os países ocidentais e a China. Pelas suas consequências nefastas para os países asiáticos, e para a China em especial, destacam-se as responsabilidades dos países ocidentais na promoção das guerras dos séculos XIX e inicio do XX, nas invasões e humilhações impostas à China, tendo como objectivo principal o desenvolvimento da economia dos países ocidentais (logo das suas elites) à custa da economia chinesa e indiana. O sistema de comércio marítimo de longo curso com a China baseou-se genericamente, até à Guerra do ópio, fundamentalmente, na importação pelos países ocidentais, de sofisticados produtos manufaturados, com grande valor incorporado (sedas, porcelanas, chá, entre outros), sendo comprados em troca de ouro ou prata. Apesar dos exorbitantes lucros propiciados pelo comércio com o Oriente e com a China em particular, daqui resultava um défice na balança de pagamentos para os países ocidentais. O historiador português Vitorino Magalhães Godinho refere que, a China foi o maior sorvedoiro de prata da Idade Moderna. O economista germânico-americano André Gunder Frank defendeu, que a economia do mundo até à Guerra do ópio teria sido globalmente impulsionada pela economia chinesa, logo seguida da indiana e como exemplo diria que, se se pudesse comparar a um comboio, o seu motor teria sido a economia chinesa.
Os líderes dos países ocidentais só conseguiram inverter a autossuficiência deste sistema mercantil chinês autocentrado, e desequilibrar a balança de pagamentos a seu favor, pela imposição, através das guerras, do comércio ilegal do ópio como moeda de pagamento para a importação ocidental dos preciosos produtos chineses. Em consequência, da vitória militar, os países ocidentais impuseram um controlo sobre a economia chinesa e a drenagem das suas riquezas para o Ocidente, agravando e acelerando as fragilidades inerentes à sociedade chinesa, e determinando a sua rápida desagregação e decadência político, económica e social. Todo este contexto, conduziu à multiplicação das inevitáveis vagas de fomes e de drenagem de mão-de-obra servil chinesa (naquela época, chamado de comércio de cules, realizado com a complacência das autoridades imperiais chinesas, principalmente para colónias europeias e para o continente americano). Guerras e comércio desigual impostos pelo Ocidente à China, contribuíram determinantemente para o desenvolvimento das economias e riqueza das elites ocidentais, mas impuseram direta e indiretamente um severo agravamento das condições de vida da população chinesa, sem qualquer respeito pelos direitos humanos.
Ainda do ponto de vista histórico gostaria de referir um contributo, pouco conhecido, da civilização chinesa para a perceção europeia do que viriam a ser os direitos individuais, na sociedade da Idade Moderna europeia – o mérito pessoal, baseado no conhecimento e competência, aferido em exames públicos em todo o império chinês. Ao contrário do que aconteceu na europa, geralmente até ao dealbar do século 19/20, na china todos os candidatos a um cargo da administração do império, independentemente da sua origem social, tinham de fazer um exame para poderem ser nomeados. O facto de na China os letrados estarem no comando da estrutura administrativa do império, a respetiva ascensão social, juntamente com um sistema de aplicação da justiça orientada por legislação civil, aplicada com maior critério universal que no ocidente, que se distanciava muito lentamente da sociedade de antigo regime, foram alvo do elogio de muitos dos viajantes portugueses e europeus da idade moderna, vindo a influenciar o pensamento dos iluministas franceses, como Voltaire ou Montesquieu.
Foi com os governos da República Popular da China, que a herança da situação de exploração de recursos naturais e humanos da China, pelas potências ocidentais, seria invertida e começaria um processo de aquisição de direitos civis e humanos. Foram proibidas tradições discriminatórias, como a deformação artificial dos pés das mulheres abastadas. Decorrente do processo de extraordinário desenvolvimento económico, assiste-se à ampliação de um maior número de direitos cívicos. Do acesso a melhores condições de vida: da ultrapassagem das piores situações de carência alimentar (e 300 milhões de chineses conseguiram a sua ascensão à classe média), maior acesso a serviços de saúde, à educação e a bens culturais. Por outro lado, inicia-se igualmente um processo de ampliação da consciência da importância de conciliar os interesses públicos e da administração central, com os direitos individuais, humanos e cívicos.
Neste contexto partilho da conceção, de que é aos cidadãos chineses e suas autoridades que compete decidir sobre a forma de ampliar os direitos humanos na China. Apesar de vivermos num mundo cada vez mais globalizado e algumas influências exógenas se fazerem sentir positivamente nos nossos países, penso que a defesa efetiva dos direitos humanos é um processo endógeno a cada sociedade, que depende da consciência cívica e da correlação de poder das organizações da sociedade civil, bem como do processo de desenvolvimento económico e social.
Assistimos hoje a uma inversão no discurso sobre os direitos humanos na China por parte dos líderes ocidentais?
A sua questão pressupõe que aceitemos que os atuais lideres ocidentais têm legitimidade para dar “lições de moral “ à China. Partilho da perspetiva dos que têm dúvidas que os atuais líderes europeus e outros ocidentais, tenham a legitimidade de ensinar direitos humanos à China, quando no próprio Ocidente, em geral, devido à ação recente destes líderes ocidentais, se assiste ao retrocesso dos direitos humanos básicos, como o direito ao trabalho (e à limitação da atividade sindical em sua defesa), à alimentação e habitação condigna, bem como à saúde e à educação tendencialmente gratuitas, direitos inseridos em algumas das constituições de países europeus. A própria União Europeia define como direitos humanos, os direitos cívicos, políticos, económicos, sociais e culturais. Promove igualmente os direitos das mulheres, das crianças, das minorias e das pessoas deslocadas (http://eeas.europa.eu/human_rights/index_en.htm). Alguns dos governos ocidentais têm atualmente alterado o quadro legislativo dos seus países para arbitrariamente diminuírem a capacidade de resistência dos seus cidadãos, bem como têm reprimido algumas das iniciativas das organizações da sociedade civil, em defesa dos direitos anteriormente adquiridos. Por outro lado, muitas das grandes multinacionais ocidentais que transferiram a sua produção para a China, não aplicam no interior das suas fábricas chinesas os mesmos direitos cívicos e humanos que possuem os seus empregados nas suas delegações e sedes nos países ocidentais. Neste contexto, afigura-se legitimo pensar que os governos ocidentais quando pressionam a China, para adotar um sistema político do tipo Ocidental, não o façam unicamente por consideração para com o cidadão chinês, mas também por estratégia política. Por pensarem que a democracia parlamentar poderá fragilizar a coesão política da China, propiciando a sua fragmentação regional e dessa forma enfraquecer a presente ascensão económica e a influência da China no mundo do século XXI. Tentando prolongar o atual modelo unipolar, dominado económica e militarmente pela América do Norte e evitar a sua substituição por um mundo multipolar, onde tenham de aceitar partilhar responsabilidades de liderança com a Ásia (com a China e a Índia), com a Rússia e com a União Europeia.
Dito isto, num âmbito multilateral e de respeito mutuo, considero importante o diálogo e toda a reflecção sobre a melhor forma de aprofundamento dos direitos humanos, quer na China, quer no Ocidente (incluindo a EU, os Estados Unidos da América e as restantes potências a nível mundial). Recordemos que a líder da maior potência democrática da América do Sul, Dilma Rousseff, a presidente do Brasil, referiu em resposta a uma pergunta sobre direitos humanos na China, que “todos temos problemas de direitos humanos”. Nos EUA e na Europa assiste-se a situações de marginalização e algumas vezes de agressão xenófoba, contra comunidades étnicas minoritárias [nomeadamente na Alemanha, Itália, Polónia, Suécia, Dinamarca, e Espanha. Na França, na primeira semana de Agosto de 2012, vimos uma comunidade de cidadãos europeus (ciganos de etnia romena e búlgara) ser expulsa pelo governo democrático de François Hollande, contra as suas próprias promessas antes de ser eleito]. No âmbito do diálogo multilateral sobre Direitos Humanos é admissível a China ser confrontada, nomeadamente, com a frequente punição de chineses com opinião política divergente, ou sobre a limitação do direito de certas minorias; tal como a EU ser questionada pela China, sobre as referidas limitações de direitos humanos a cidadãos europeus.
Existem encontros específicos – por exemplo, no seio da União Europeia – para discutir o tema. Podemos dizer que o dossier dos direitos humanos continua a ser uma realidade, mas é abordado em locais próprios?
Quanto à sua questão, não penso que tenha havido uma inversão na estratégia de diálogo Europa-China sobre Direitos Humanos, por não haver grandes proclamações dos dirigentes europeus quando vão a Beijing. Talvez uma maior compreensão da sua complexidade, tenha levado a privilegiar os espaços próprios entretanto criados para analisar os Direitos humanos. Não esqueçamos que, no contexto das relações Europa-China, o diálogo sobre Direitos Humanos, foi lançado em 1995, e formalizado por encontros oficiais bilaterais, tendo-se reunido maioritariamente duas vezes por ano, intercalando Beijing e Bruxelas como locais de reunião. Separada mas paralelamente têm-se desenvolvido seminários com especialistas em questões específicas como a pena de morte, e a transposição de pactos internacionais. Adicionalmente vários projetos de cooperação prática têm sido desenvolvidos, nomeadamente, para a formação de advogados.
Nota alguns desenvolvimentos na China em matéria de direitos humanos ou subsistem questões discutíveis?
Tem sido notável a evolução da posição conciliatória da China. Revelando maior cooperação nas áreas técnicas, nomeadamente, em relatórios dos Pactos das Nações Unidas, reforma judicial, assistência legal, entre outras. A 29 de Maio de 2012, reuniu-se em Bruxelas, a 31ª ronda, que debateu o tema geral da punição criminal e das condições de limitações à liberdade individual(http://eeas.europa.eu/delegations/china/press_corner/all_news/news/2012/20120601_en.htm). O comunicado da reunião refere que a EU e a China analisaram questões como, vigilância de domicílio, prisão domiciliária, condições de detenção em prisões. A China apresentou a sua preocupação com as questões de xenofobia e de discriminação racial existentes na Europa e a nível internacional. Tendo a Europa explicado as suas políticas de combate ao racismo e xenofobia. Por sua vez a EU levantou algumas questões sobre a situação na China face às minorias étnicas (Tibetanos, Uigures e Cristãos), ao tratamento de refugiados da Coreia do Norte, ao respeito pela lei, à liberdade de expressão e ao respeito pela sociedade civil. A EU apresentou ainda uma lista de casos individuais de limitação da liberdade, dos quais a China deu resposta a 25 (identificados na lista apresentada em 2011). A EU e a China trocaram perspetivas de cooperação com o Concelho para os Direitos Humanos das Nações Unidas e com o Gabinete do Alto Comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas.
Recordemos ainda que a nova postura da China, de envolvimento e empenho na ONU, levou à sua eleição, em Maio de 2006, para integrar o Conselho de Direitos Humanos da ONU (órgão de apoio à Assembleia Geral).
Há pouco falámos da União Europeia. Como podemos descrever a relação que existe com a China? O Diálogo Estratégico de Alto Nível China-EU tem sido proveitoso?
As relações da Europa com China foram estabelecidas em 1975, são dirigidas pelo Acordo de comércio e cooperação, de 1985, e consubstanciadas em 24 comissões sectoriais de Diálogo, que vão da proteção ambiental à educação (http://ec.europa.eu/external_relations/china/index_en.htm). Parece ser uma relação construtiva, que tem sido muito proveitosa para ambas as partes. A China tem privilegiado a sua parceria estratégica com a Europa, o que tem permito diversificar a respetiva interdependência de ambas para com os EUA. A China aumenta o seu investimento na Europa, relativizando o risco da sua excessiva anterior aplicação de capitais na dívida pública dos EUA, a Europa respira de alívio perante a entrada de capital fresco na sua economia, e reforça a sua influência política e estratégica na Ásia. A EU continua a ser o maior parceiro comercial da China e a sua principal fonte de tecnologia. A China é hoje o segundo maior parceiro mercantil da Europa, logo após os EUA (http://ec.europa.eu/trade/creating-opportunities/bilateral-relations/countries/china/). A maioria deste comércio refere-se a produtos manufaturados e industriais. Entre 2009 e 2010 as exportações europeias para a China aumentaram 38% e as exportações chinesas para a Europa aumentaram 31%. Em 2011 a Europa exportou para a China, só em mercadorias, 136,2 biliões de Euros e importou 292,1 biliões de euros da China (EU – China statistics).
A 9 de Julho de 2012 reuniu-se a 3ª ronda do Diálogo Estratégico de Alto Nível entre a Europa-China, e considerando encontrarem-se ambas “cada vez mais interdependentes” decidiram ampliar a cooperação internacional e “tratar as suas divergências de uma maneira construtiva”. “A China reafirmou o apoio à integração europeia e aos esforços da Europa para sair da crise” e “a EU reafirmou o apoio ao desenvolvimento pacífico da China e ao respeito pela sua soberania e integridade territorial” (http://europa.eu/rapid/pressReleasesAction.do?reference= IP/12/765&type=HTML).
Especialistas atentos (como Alastair Johnston, Social States: China in International Institution, 1980-2000; Ann Kent, Beyond Complience – China, international Organizatiions and Global Security; Luís Cunha, A Hora do Dragão, Política Externa da China) têm reconhecido que a China se tem envolvido profundamente nas organizações internacionais, assimilando os específicos mecanismos, e enquadramentos teóricos e jurídicos, contribuindo para o renascimento e reforço do papel dessas organizações no quadro internacional multilateral (ONU, ASEAN,…). Neste contexto, partilhamos da opinião de que a plena integração e interiorização da cultura institucional associada às organizações multilaterais pela China, transforma-a paradoxalmente, apesar das inerentes contradições, numa defensora desse statu quo internacional. Cuja ação reforça quer a legitimidade dessas organizações, quer legitima um papel reforçado da China no mundo atual. Esta interdependência é um contributo para a Paz.
O embargo de armas pode ser considerado como um factor que destabiliza a relação China-UE?
Sim. Na sequência do reforço do envolvimento da China nas organizações multilaterais e em particular com a Europa, a China tem pedido o levantamento do embargo de armas (em vigor desde a supressão dos protestos da Praça Tiananmen, em 1989), argumentando que a sua manutenção é discriminatória, “muito intrigante” e “preconceituosa” («China asks EU to scrap ‘prejudiced’ arms embargo». The Hindu. January 28, 2010). A Europa argumenta oficialmente com a situação dos direitos humanos na China, para justificar a sua manutenção («EU urged to lift ‘damaging’ arms embargo against China», The Parliament, November 28, 2008). Duas posições se confrontam na UE: a corrente de opinião mais pragmática, segundo a qual o embargo deve ser levantado, defendida por alguns países como a França, a Áustria, a Bélgica, a Republica Checa, a Grécia, a Itália e o Reino Unido. Numa posição contra o levantamento posicionam-se o Parlamento Europeu, a Alemanha, a Dinamarca, a Holanda, e a Suécia. Contudo, sob certas condições, os vários países concordariam em levantar o embargo (Rettman, Andrew (25 July 2011) Leaked cable shows fragility of EU arms ban on China, EU observer). A Alta Representante da EU para os Assuntos Estrangeiros e a segurança, Catherine Ashtonput, defendeu que “o embargo é um grande impedimento a um maior desenvolvimento da cooperação EU-China nos assuntos internacionais e de segurança” e o embaixador chinês, Song Zhe, referiu que o embargo tem como consequência um mais rápido desenvolvimento da tecnologia chinesa e de aquisição de armamento russo [Rettman, Andrew (17 December 2010) Ashton pragmatic on China in EU foreign policy blueprint, EU Observer; Willis, Andrew (19 May 2011) Japan: Ashton was wrong on China arms ban, EU Observer]. Os EUA lideram a enorme pressão internacional sobre a EU para manter o embargo (associados ao Japão), com vista a manter o domínio geoestratégico e militar dos EUA no plano mundial e, em especial, no Mar da China (Taiwan) e Pacífico. A corrente europeia de opinião mais pragmática argumenta que o levantamento do embargo reforçará o papel da Europa num mundo multipolar.
Por outro lado, os investimentos militares chineses têm tido um objectivo defensivo e limitado geograficamente ao mar da China (à criação de capacidade defensiva numa linha de proteção que ligaria as ilhas Aleutas a norte, ao Bornéu a Sul, possivelmente só operacional cerca de 2020). Levando vários analistas ocidentais a destacar o facto de que, o investimento militar chinês continua muito longe de ser uma ameaça para o Ocidente (e muito menos para o poderio militar dos EUA, que está 30 a 50 anos à frente da situação das forças militares chinesas), devido a 3 principais fatores: 1- A China tem como interesse nacional e vital a estabilidade do sistema económico mundial. A estratégia oficial chinesa não é expansionista, e baseia-se expressamente nos princípios de desenvolvimento pacífico e harmonioso, e de afirmação de um mundo multipolar. Cresceu o envolvimento chinês nas várias instituições multilaterais, nomeadamente na ONU. Nos últimos anos a China tem sido o maior contribuinte para as missões de observação e de paz, de entre os 5 membros do conselho de segurança da ONU; 2 – Apesar do crescimento económico a China tem mantido a mesma percentagem de investimento em defesa, cerca de 2% do seu GDP, enquanto os EUA, quase sem crescimento económico, investem mais do dobro dos chineses (4,7 %). Para manter a coesão da sociedade chinesa, dirigentes do Partido comunista afirmaram repetidamente que, a China poderá diminuir o investimento militar, numa situação de redução significativa do seu crescimento económico; 3 – As forças militares chinesas atuais não têm real experiencia de combate (China military rise e The Dragon’s new teeth, The Economist, April 7th, 2012).
O desconhecimento da história da civilização chinesa, por parte de alguns lideres europeus, tem levado a EU, muitas vezes, a uma estratégia errática e contraditória, entre uma atitude apologética (sinofilia) e outras de recusa (sinofobia). Pensamos que as relações entre a Europa e China deverão ser reforçadas e aprofundadas numa posição de respeito e interesse mutuo, que permitam contribuir para dar à EU uma outra centralidade no mundo multipolar em reconstrução.
A própria Região Administrativa Especial de Macau tem relações de cooperação com a Europa, desde 1992, as quais ,segundo o Chefe do Executivo Fernando Chui Sai On, estão «assentes em bons alicerces» como declarou numa visita a Bruxelas, com o objetivo de «reforçar a cooperação em diversas áreas, especialmente, no comércio, indústrias criativas e culturais, proteção ambiental e educação». Por outro lado, a EU tem um representante no seu “Gabinete de Hong Kong e Macau”, que “desempenha um papel como plataforma na cooperação União Europeia-China» (http://www.oje.pt/noticias/internacional/fernando-chui-sai-on-inicia-visita-as-instituicoes-europeias).
Com Portugal, podemos dizer que as relações atravessam uma fase positiva? Como é que os portugueses olham para este interesse recíproco?
As relações de Portugal com a China iniciaram-se à 500 anos, com a chegada de Jorge Alvares ao litoral da província chinesa de Guangdong (na Ilha de Tamão), em 1513. Somos a nação europeia com maior longevidade nas relações diretas e continuas com a China, tendo sido Macau, sempre o grande centro de difusão da cultura portuguesa e europeia na China, e da cultura chinesa em Portugal, na Europa e no mundo lusófono.
A 7 de fevereiro de 1979 Portugal e a China estabeleceram, formalmente, relações diplomáticas. A relevância de Portugal para a China é demonstrada pela assinatura (em 2005) do acordo de ”parceria estratégica” entre a China e Portugal – um dos poucos que o Governo chinês mantém com países europeus.
Quanto ao investimento chinês em Portugal, assistimos, em 2011 e 2012, a um crescimento exponencial em áreas do interesse estratégico da China (a China Three Gorges Corporation comprou 21,35% da EDP; a State Grid comprou 25% da REN e planeia investir em Portugal 12 milhões de euros num centro tecnológico; dois bancos chineses, o Bank of China e o Industrial and Commercial Bank of China, já abriram escritórios em Lisboa, o que se pode traduzir num significativo aumento das atividades financeiras entre estes países). Assim a China passa a ter um lugar, gradualmente mais significativo (antes de 2010 ocupava o 41º lugar), entre os países que investem em Portugal.
A enquadrar institucionalmente esta crescente importância para Portugal das relações com a China, a ”parceria estratégica” com a China foi confirmada e reafirmada pelo ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Portas, na sua visita a Beijing, em Julho de 2012, seguida da visita do Ministro das Finanças Jorge Gaspar. O ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros Paulo Portas afirmou em Shanghai que “Ninguém compreenderá o século XXI sem compreender a China. (…) Nós olhamos para a China sem preconceitos e respeitamos as diferenças”, e defendeu que o Ocidente e a China deveriam desenvolver uma “relação de cooperação e não de confronto”.
Na atualidade, assiste-se a uma intensificação das relações entre Portugal e a China, consubstanciada igualmente pelo significativo número de Portugueses que têm procurado várias cidades chinesas para trabalharem e fixarem os seus negócios, em especial Macau, Beijing e Shanghai. Vários acordos foram assinados nas áreas da saúde, proteção recíproca de investimentos, ensino das línguas portuguesa e chinesas, moldagem, comunicações e tecnologias. Em 2008 a China Union Pay a Caixa Geral de Depósitos assinaram um acordo que torna possível a utilização de cartões de bancos chineses nas ATMs portuguesas. Em 2011, mais 8,4% empresas portuguesas exportaram para a China, face a 2010, chegando às 915. O valor das exportações portuguesas em 2011 representou um crescimento de 54,1% face a 2010, tendo o volume de trocas atingido os 399 milhões de dólares, em 2011. Só entre Janeiro e Março de 2012 as exportações portuguesas aumentaram 201%, face a mesmo período de 2011, totalizando 301,4 milhões de euros. Novas oportunidades de comércio se abrem quando constatamos que o mercado de luxo tem vindo a crescer cerca de 35%, pelo que em 2015, de fábrica do mundo a China se assumirá como grande consumidor mundial de marcas de luxo, logo depois do Japão.
Considero que Portugal deveria dar especial atenção ao sector turístico chinês, dado o crescente número de turistas chineses a visitar a Europa. Prevê-se que o número de chineses a viajar anualmente para o estrangeiro atinja 100 milhões cerca de 2020. O mercado do vinho na China cresce 20% ao ano (acreditando-se que em 2017 terá passado o mercado dos EUA), o que coloca um desafio para a exportação de vinhos portugueses (considerados de grande qualidade internacional). O Azeite de Trás os Montes ganha em Maio de 2012 medalha de ouro em Pequim. A Cimpor (depois da maioria do capital ser comprado por duas empresas chinesas) apostou na Cimpor China que em 2011 duplicou face a 2010 e lucrou 17,9 milhões euros. Alguns têxteis portugueses conseguem penetrar no muito exigente mercado chinês (nomeadamente a Abyss & Habidecor factura cerca de 1,2 milhões de € nos 16 pontos de venda que tem na China).
Várias instituições universitárias e da sociedade civil portuguesa (como o Observatório da China) têm aprofundado as suas relações com instituições chinesas. O interesse pela cultura chinesa tem aumentado em Portugal, acompanhando o crescente interesse de instituições portuguesas em desenvolver iniciativas culturais ou económicas relacionadas com a China.
Há um claro projecto lusófono chinês em curso. De que forma pode ser aproveitado por Portugal? As autoridades lusas estão cientes da importância que este pode representar?
Na nossa opinião deveremos aprofundar a reflexão e dar uma especial atenção à estratégia lusófona da China. Na sequência dos princípios orientadores da sua política interna de desenvolvimento harmonioso da sociedade chinesa e de respeito pelo meio ambiente, a China gizou uma estratégia que pretende assegurar um contínuo desenvolvimento económico. Com esta estratégia procura diminuir a pobreza e garantir o alargamento da prosperidade a sectores cada vez mais vastos da população chinesa, e canalizar meios, nomeadamente, para a recuperação de água potável e do ar poluído em muitas áreas urbanas e rurais da China. Tendo subjacente os princípios gerais da diplomacia chinesa, não podemos esquecer a preocupação da China (à semelhança do que acontece com os países ocidentais) em colmatar as necessidades de matérias-primas e de fontes de energia. A China estabeleceu relações nos cinco continentes com os países produtores de matérias-primas, como hidrocarbonatos (petróleo de Angola, Brasil e Timor), ou gaz natural (Moçambique), ou alimentares (do Brasil a soja) e tecnologias alternativas (como as eólicas em Portugal).
A China compreendeu a mais-valia que representa a cidade de Macau, com as suas raízes e ligações histórico-culturais e económicas, pelo que a transformou na sua plataforma oficial, facilitadora de contactos com os países lusófonos. Assim o governo central chinês decidiu instituir o Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, sediado em Macau (conhecido por Fórum Macau).
Macau apresenta várias vantagens, nomeadamente, o seu sistema legal que, sendo semelhante ao português, facilita as relações económicas. Para prevenir uma taxação dupla, foram criados acordos (de Macau com Portugal e com Moçambique) com o objectivo de os estender a todos os países de Língua portuguesa. O Governo da Região Especial Administrativa de Macau (RAEM) tem tido uma grande sensibilidade na preservação do património histórico construído de raiz portuguesa, que culminou na obtenção da classificação, pela UNESCO, de Património Histórico da Humanidade. Em Macau tem sido incentivado o intercâmbio com as Culturas e a Língua portuguesa, nomeadamente, através do apoio à formação de formadores para o Ensino da Língua Portuguesa na China, no apoio à organização de encontros, de colóquios e de conferências internacionais e no incentivo à difusão da obra de escritores sobre Macau. Foi em Macau que se realizou, em 2006, a primeira edição do evento multidesportivo “Jogos da Lusofonia”. Naturalmente que a maior parte dos negócios entre os países lusófonos e a China se têm realizado bilateralmente, mas o Fórum tem aumentado as suas oportunidades. A Associação Comercial Internacional para os Mercados Lusófonos, de Macau, tem desenvolvido, igualmente, um diversificado número de negócios, como a exportação de medicamentos chineses para Cabo Verde, Angola e Moçambique; de vestuário, calçado e motorizadas para Angola. Por outro lado importa madeira, algodão e caju de Moçambique; café de Timor; azeite, vinho e medicamentos de Portugal.
Em 2003 o comércio entre a China e os Países de Lusófonos era de apenas 10 biliões de dólares e em 2008 esse valor já subira para 77 biliões de dólares. O comércio tem aumentado 57% ao ano (segundo o Wen Jiabao). Angola já é o maior fornecedor africano de petróleo da China. Desde 2004 a China ofereceu 3,6 bilhões de yuans de ajuda a Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e Timor Leste e cancelou 230 milhões em dívidas.
Os investimentos da China nos países lusófonos devem ser enquadrados nas suas relações com África e o resto do mundo. A par de importador a China é o maior exportador mundial, tendo ultrapassado a Alemanha em 2010. É também o principal parceiro comercial de África, tendo criado o Fórum China-Africa, que reúne de 3 em 3 anos (a 5ª Conferência está em preparação). A China absorve 17% do comércio exterior de África (quando era só de 1% em 1990), tendo ultrapassado os EUA desde 2009. A China é igualmente o principal parceiro comercial da África do Sul (45 mil milhões de dólares de trocas), no qual tem investido 2/3 do seu capital em África.
Partilhamos da opinião dos que pensam que Portugal e Macau podem e devem reforçar o seu papel, como plataformas facilitadoras de relações culturais e de negócios entre a China e os países lusófonos. O alargamento do Canal do Panamá permitirá, em 2014, o acesso mais rápido e direto da China a Portugal. O porto oceânico de Sines será o primeiro da Europa, que um navio vindo da Ásia, dos Estados Unidos, ou do Brasil encontrará na Europa (Paulo Borges, “Sobre o Conceito de Centralidade Económica: Uma Aplicação a Nível Internacional’, tese em economia pelo ISCTE). Esta posição geoestratégica será uma grande vantagem económica e um grande desafio a ser assumido por Portugal.
Questões sobre o Observatório:
O Observatório foi criado em 2005. Qual é a principal missão que tem?
O Observatório da China é uma associação de académicos e de estudiosos interessados em estudos multidisciplinares sobre a China e na divulgação da civilização chinesa. A sua principal missão é a organização de atividades académicas ou culturais para a divulgação do conhecimento sobre a China e apoiar a divulgação de trabalhos de especialistas (associados ou não). Consideramos que quanto maior for o conhecimento nas sociedades ocidentais sobre a China e sobre a sua multimilenar e sofisticada civilização, menor será a tendência para movimentos xenófobos, que em alturas de crise tendem a aumentar.
Tem investigadores associados? Já produziram muita matéria? Em relação a Macau, têm realizado actividades e estudos sobre o território?
A sede do Observatório está sediada em Lisboa, mas temos associados em várias universidades e localidades de Norte a Sul de Portugal (nomeadamente no Porto, Aveiro, Coimbra, Lisboa e Algarve). Temos um pólo no Brasil (Salvador) e associados em Macau, Shanghai e Beijing. De entre os mais de oitenta associados inscritos, temos investigadores seniores e jovens (a fazerem as suas teses de mestrado e de doutoramento). Entre eles, contam-se ex-embaixadores, presidentes de conselhos científicos de faculdades portuguesas, professores, diretores de divisão de ministérios, jornalistas, realizadores de cinema, entre outras profissões. O Observatório da China desenvolveu um amplo e diversificado conjunto de atividades em Portugal e no estrangeiro, muitas delas sobre ou diretamente relacionadas com Macau, nomeadamente:
· A organização de eventos descentralizados de modo a estimular o debate e a troca de conhecimentos, de opiniões e de experiências (tertúlias, palestras para apresentação de investigações em curso e outras já concluídas), exposições, nomeadamente de fotografias sobre Macau nos dias de hoje, sobre a China contemporânea e sobre as rotas da seda (realizadas em Aveiro, Setúbal, Faro, Sines Lisboa, Cascais, Vila Nova de Famalicão e Montemor-o-Velho). Espetáculos de música, de dança, declamação de poesia chinesa, ciclos de cinema chinês e de cinema Português sobre Macau e a China;
· A cooperação com entidades públicas e privadas, nacionais e estrangeiras, em várias áreas do conhecimento e da cultura: conferências académicas internacionais em associação com Universidades e centros Universitários (nomeadamente em Lisboa, Aveiro, Coimbra, Salvador da Bahia; espetáculos com músicos chineses, europeus e Lusófonos), no Brasil o Observatório da China associou-se a universidades como a UNEB (para a realização de um colóquio sobre as relações entre Portugal-Brasil-China), e a UFBA/Centro de Estudos Afro-Oriental (para apoiar o XI Congresso Luso Afro-Brasileiro; apoiámos a ida de Mia Couto para duas palestras em Salvador; apoiámos ainda eventos literários, como o encontro de Escritores de Língua Portuguesa, em Natal, como a ida de escritores representando Macau. Algumas destas realizações tiveram apoio de várias instituições (União Europeia, Fundação Macau, IIM, UCCLA, CML, Fundação Oriente, Fundação Jorge Alvares, entre outras);
· Temos vindo a participar em redes internacionais relacionadas diretamente com os estudos chineses, como a East Asia Net e o China-Europa Fórum;
· Temos lançado, coordenado e apoiado a edição de publicações em papel (como o livro De Lisboa à China, 2009, com estudos sobre as relações da Europa e de Portugal com Macau e a China, desde a antiguidade ao século XX, escritos por 10 autores diferentes; ou o apoio dado à edição de 2012 do livro De Olhos em Bico e em Bicos de Pés, coordenado pelos nossos associados, Jorge Tavares da Silva e Zélia Breda); e em formato digital (edição de inúmeros estudos disponíveis no nosso site www.observatoriodachina.org).
O Observatório mantém alguma relação com a comunidade chinesa em Portugal?
Sim. Por um lado temos chineses que são nossos associados, alguns são investigadores e outros apoiam as atividades de associações de chineses em Portugal. Quando no passado se tentou isolar a comunidade chinesa num gueto (numa área desfavorecida da cidade), apoiámos a recusa chinesa a essa medida.
Esta comunidade continua a crescer? Como se pode caracterizar?
A população chinesa com estatuto de residente em Portugal aumentou de forma gradual, conforme indicam os números do Instituto Nacional de Estatística, passando de 3.953, em 2001, para os 13.313, em 2008. No recente relatório do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), publicado em Dezembro de 2011, a comunidade chinesa ocupava o 8º lugar, com 3,53% do total da população estrangeira em Portugal, possuindo 15.600 autorizações de residência no país. O presidente da Liga dos Chineses em Portugal, Y Ping Chow, calculava que com familiares, o número de chineses em Portugal atingisse, em 2011, cerca de 20 mil pessoas.
A comunidade chinesa em Portugal, tal como as restantes, é constituída por diferentes gerações (os que vieram em meados do século XX, acompanhados dos seus filhos – alguns nascidos em Portugal e luso-chineses, e os de imigração mais recente). Naturalmente o seu grau de integração profissional é muito diferente. Na maioria dedicam-se ao pequeno comércio. Mas na segunda e terceira geração encontramos desde profissões liberais (como engenheiros e médicos) a empregados noutras áreas de atividade económica. Encontra-se igualmente em Portugal uma pequena comunidade de estudantes bolseiros, quer provenientes da China continental, quer da RAEM.
Contudo com o recente agravamento da crise da zona euro, com particular incidência económico-social em Portugal, tem afetado todo o pequeno e médio comércio no interior das cidades. Esta recessão tem fragilizado muitos pequenos negócios, propriedade quer de portugueses quer de chineses, essencialmente ligados à restauração, a lojas de vestuário e produtos decorativos. Do universo das cerca de 5000 lojas chinesas em Portugal, algumas têm vindo a encerrar nos últimos meses, levando à saída de Portugal de alguns dos seus proprietários e empregados chineses (segundo o presidente da Liga dos Chineses em Portugal).
—Entrevista para Ponto Final, Jornal de Macau, em Língua Portuguesa Agosto 2012