O anteprojeto de lei da propiedade privada

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A Assembléia Popular Nacional (APN) se prepara para definir constitucionalmente, em março, o papel da propriedade privada na China.


O anteprojeto – arquitetado para proteger as propriedades públicas e privadas no país – está passando pela sétima – e discreta – revisão no Comitê Permanente da APN. As discussões em torno de suas mais de 1.000 cláusulas, entretanto, trazem à tona as tensões políticas e econômicas que a lei da propriedade privada provoca na nação mais populosa do planeta. “Ele (o anteprojeto) foi retirado da sessão nacional da APN em março de 2004 em função das preocupações sobre o possível enfraquecimento dos fundamentos legais do sistema socialista na China”, reconheceu a Agência de Notícias Xinhua.

O anteprojeto chegou ao parlamento chinês em novembro de 2002, no vácuo da doutrina da “Tríplice Representatividade” do ex-presidente Jiang Zemin e da admissão do empresariado nacional no seio do Partido Comunista da China (PCCh). “A lei melhorará o sistema jurídico da propriedade privada, assim como reforçará a capacidade de supervisão e administração da economia de natureza não-pública no país”, afirmou Jiang durante o discurso que pronunciou na abertura do 16º Congresso do PCCh.

Desde então, a necessidade de a quarta economia mundial reconhecer formalmente a propriedade privada vem provocando calafrios no PCCh. As lições oferecidas pelo abrupto desmantelamento dos regimes comunistas na ex-União Soviética e nos países do Leste Europeu permanecem vivas na memória política de Pequim. O anteprojeto, na avaliação de muitas lideranças e correntes intelectuais do partido, ratifica oficialmente a importância dos valores liberais – em detrimento aos socialistas – e pode amplificar a demanda por mais democracia política em médio e longo prazo na China.

“As questões relacionadas à propriedade privada são minuciosamente analisadas pelo Partido Comunista. O regime evita empregar, ao máximo, a expressão ´privatização´, não obstante o grande número de empresas públicas inseridas neste programa. A ordem é privatizar, mas sem colocar em risco o predomínio do Partido. Externamente, a regulamentação é apresentada como conveniente e necessária para fortalecer os intercâmbios com a economia mundial. Internamente, no entanto, sabe-se que o seu formato deve fazer prevalecer o controle do Partido sobre os novos atores econômicos ”, avaliou Xúlio Rios, diretor do Instituto Igadi, da Espanha, à Agência Estado.

O problema é que o processo de abertura e reforma econômica – adotado há pouco mais de 27 anos -, abriu espaço para o reflorescimento da livre iniciativa no país. De acordo com as autoridades, o setor privado responde por mais de dois terços do Produto Interno Bruto (PIB) nacional – estimado em US$ 2,5 trilhões em 2006 – e emprega mais de 150 milhões de pessoas. Ao mesmo tempo, a economia privada vem convivendo com uma ampla gama de variações da economia de propriedade pública – estatal, societária, coletiva e coletiva mista, entre outras formas.

“A essência do direito de propriedade – especialmente a coletiva – ainda não foi cabalmente estabelecida na China. Muito embora a atual Constituição ofereça garantias aos bens imóveis e aos depósitos bancários, por exemplo, temos que reconhecer que o direito à propriedade privada é fruto da civilização humana. Ou seja, precisamos avançar muito nesta área”, diz o professor do Instituto de Direito da Academia de Ciências Sociais da China, Wang Shoucong.

Mas, às vésperas do 17º Congresso do PCCh – programado para o segundo semestre – o governo chinês começa a emitir inequívocos sinais sobre o tipo de propriedade que regerá a economia nacional na próxima década. “A propriedade estatal permanecerá no núcleo central do nosso sistema econômico”, antecipou a vice-primeira ministra chinesa, Wu Yi, durante o primeiro Diálogo Estratégico Econômico entre a China e os Estados Unidos, promovido em dezembro, nesta Capital.

A estratégia se justifica, na avaliação da cúpula do partido. A ampliação do fosso que divide os ricos dos pobres, as diferenças nos níveis de desenvolvimento observados entre as zonas rurais e urbanas – assim como as interregionais, o crescente número de protestos e a corrupção ameaçam a autoridade do PCCh. “A China está enfrentando profundas mudanças em sua estrutura social e econômica, com muitos fatores desestabilizadores. O número e a extensão dos incidentes de massas se tornaram o problema de maior destaque que perturba gravemente a estabilidade social da nação”, admitiu recentemente a Agência de Notícias Xinhua.

Para a cúpula, o governo deve continuar exercendo um profundo controle sobre os recursos terrestres e marítimos, além de sete setores vitais da economia nacional – bélico, elétrico, petroquímico, carvoeiro, telecomunicações, aviação civil e transporte fluvial. “Vamos formar um núcleo especial de 30 a 50 corporações empresariais estatais com forte poder de competitividade nacional e internacional até 2010”, anunciou o diretor da prestigiada Comissão Nacional de Supervisão e Administração dos Bens do Estado (Sasac, na sigla em inglês), Li Rongrong, antes de frisar que os estoques acionários dessas empresas serão reestruturados e abertos a “investidores estratégicos”.

Na opinião de Rios, entretanto, grande parte das propriedades públicas poderá seguir outro destino. “Uma quantidade imensurável de empresas de propriedade social funciona, na prática, como propriedade privada. Os seus gerentes, formalmente eleitos pelos trabalhadores, atuam como se fossem seus proprietários. A nova legislação pode abrir caminho para a liquidação deste segmento da economia, ao regularizar a apropriação desses bens públicos. Por isso, o código vai introduzir importantes mudanças na estrutura econômica e social do país, dificultando o controle exercido pelo Partido Comunista”, declarou.

 

Impactos

O anteprojeto também está sendo recebido com muita cautela por intelectuais ligados às áreas rurais chinesas. “É muito fácil de compreender (o fato de a privatização das terras não funcionar na China) quando se visita países como a Índia, o México e Bangladesh. Todos possuem um sistema privado de terras, mas as coisas (para os camponeses) vão muito pior do que na China. Até agora, a questão rural na China está melhor do que na maioria dos grandes e populosos países em desenvolvimento. Isto se deve ao fato de a China ter vivenciado uma revolução social que concedeu terras (o seu direito de uso) a todos”, disparou à imprensa internacional Wen Tiejun, professor da Universidade do Povo, ao lançar uma advertência sobre uma possível catástrofe social no país.

“A China não suportará um grau de urbanização superior a 55%. O incentivo à migração de milhões de camponeses para os centros urbanos não tem futuro”, acrescenta Wen.

O setor imobiliário e os governos locais também estão de olho no anteprojeto. Afinal, caso a lei de propriedade privada seja aprovada, o custo de desapropriação dos imóveis e das terras pode disparar. “As indenizações teriam que obedecer aos valores reais estipulados pelo mercado”, destacou o Economic Observer.

Para os analistas, o governo chinês não tem muitas alternativas e deverá manter a aposta nos leasings de longo prazo nas áreas rurais e urbanas, a fim de “preservar a estabilidade econômica e social”.

A lei da propriedade privada, por outro lado, poderá elevar tanto o fluxo quanto a qualidade dos investimentos estrangeiros diretos (IED) para a China – que totalizaram . “Os marcos regulatórios são cruciais numa economia globalizada. O investidor exige, basicamente, segurança e retorno para o seu capital. A China honrou – como poucos – as atuais regras do jogo, a começar por suas políticas econômica e cambial. Em minha opinião, a aprovação da lei poderá atuar a favor das mudanças no atual modelo de desenvolvimento nacional ao redirecionar, por intermédio da credibilidade e de outras pequenas mudanças institucionais, os investimentos ora dirigidos ao setor manufatureiro para o setor de serviços, por exemplo”, avaliou uma fonte brasileira ligada ao mercado financeiro chinês ouvida pela Agência Estado.

Para muitos observadores estrangeiros, as pressões políticas em prol do avanço dos sindicatos chineses junto às empresas multinacionais também respondem a alguns preceitos embutidos no anteprojeto da lei de propriedade privada. A prefeitura de Shanghai, a capital financeira da China, anunciou que os sindicatos estarão presentes em 80% das multinacionais instaladas em sua municipalidade até 2008. “Ele (o PCCh) está tentando ocupar o maior número possível de espaços políticos. Isso não preocupa seriamente as grandes corporações, pois até o Wall – Mart já cedeu”, disse a fonte.